Sua melhor versão
No coração de um reino onde o sol raramente ousava romper as nuvens, habitava uma alma em silêncio. Débora, uma guerreira outrora destemida, agora se arrastava por dias turvos, sufocada por um vazio que ninguém via mas que ela sentia como uma armadura de chumbo. Não havia batalha externa. Seu inimigo era interno, sorrateiro. Vinha em ondas silenciosas, arrastando pensamentos pesados, desconectando-a do mundo aos poucos. Acordar era uma luta. Sair da cama, um campo minado. Conversas soavam distantes, como ecos em uma caverna funda.
Nas profundezas de sua mente, Débora caminhava por uma estrada coberta por uma névoa densa, onde as árvores não tinham forma e o chão parecia afundar a cada passo. Não havia trilha, apenas um impulso vago de seguir em frente, mesmo que sem entender para onde. Há semanas a cor havia desaparecido da vida. O frio constante se tornara mais do que uma sensação física: era emocional. Era ausência. Era a certeza de que algo dentro dela estava se apagando.
Certa noite, quando tudo parecia mais opaco que nunca, ela avistou uma luz pálida no horizonte de sua mente — fraca, quase imperceptível, como uma brasa prestes a se apagar. Não sabia de onde vinha, mas algo a fez segui-la. Cautelosa, atravessou a floresta enevoada da mente até que a luz se revelou: não era uma fonte única, mas sim várias pequenas chamas reunidas. Ali estavam figuras silenciosas, humanas em essência, mas envoltas em uma aura branda e acolhedora. Chamavam-se Guardiões da Felicidade. Não como seres místicos, mas como pessoas que, em algum momento, também haviam caminhado por vales escuros e sabiam o que era cair e levantar com o corpo pesado de tristeza.
Eles não deram conselhos prontos. Não tentaram curá-la com palavras vazias. Sentaram-se com ela, ouviram. esperaram e quando Débora começou a falar, aos poucos, entre pausas longas e olhos marejados, eles apenas assentiam. A dor dela encontrava eco ali, e isso foi o suficiente para acender uma fagulha de alívio.
Ao acordar desse transe , se é que aquilo fora sonho ou devaneio, Débora notou algo sutil: a dor ainda estava ali, sim, mas havia espaço para respirar. O ar parecia um pouco menos denso. A voz da autocrítica, um pouco mais distante. Ainda sentia medo. Ainda havia dias em que o corpo não respondia, em que o espelho devolvia um rosto pálido e olhos fundos. Mas agora, havia também outra voz suave, quase imperceptível, lembrando-a de que pedir ajuda não era sinal de fraqueza. Era coragem.
Com o tempo, vieram pequenas mudanças. Começou a perceber o som da chuva nas folhas, o cheiro forte do café no fogão, o latido de um cão de rua , coisas simples, mas reais. E reais eram suficientes para começar. Houve recaídas. Momentos em que tudo parecia regredir. Mas ela não se afundava mais como antes. Porque agora sabia que a estrada era longa, mas não era solitária.
Certa tarde, sob um céu de chumbo, Débora sentou-se num banco de praça. Havia silêncio e vento. Pouca gente passava. Foi quando viu uma jovem sentada próxima, os braços cruzados sobre os joelhos, o rosto escondido. O choro era contido, mas intenso. Por um instante, Débora hesitou. Mas algo, talvez lembrança, talvez instinto , a empurrou para próxima da jovem, e sem alarde e sentou ao lado. Não disse nada no começo. Apenas ficou ali. Quando a jovem enfim ergueu o rosto, os olhos vermelhos e a expressão assustada, Débora não ofereceu conselhos. Apenas disse:
— Eu não sei exatamente o que você está sentindo. Mas… se quiser conversar, eu estou aqui.
A jovem hesitou. Olhou para Débora como quem vê algo familiar, mas distante. Seus lábios tremiam, como se palavras quisessem sair, mas estivessem presas. Então, num fio de voz, ela sussurrou:
— Eu achei que ninguém mais veria...
Débora franziu a testa, confusa.
— Veria o quê?
A jovem a encarou diretamente, os olhos ainda marejados, mas agora com algo mais neles. Não era apenas tristeza. Era reconhecimento.
— A névoa.
Débora sentiu um calafrio. Aquela palavra. Aquela sensação. O frio, a névoa, a estrada sem cor. Tudo voltou à sua mente como um eco distante, ou talvez nunca tivesse saído de verdade.
— Você andou por ela, não é? — perguntou a jovem, a voz agora mais firme.
Débora apenas assentiu, surpresa com a pergunta. A jovem se endireitou no banco, ainda abraçando os próprios joelhos.
— Eu... às vezes sonho com uma estrada coberta de névoa. Árvores cinzentas. Uma luz no fim, mas tão longe... Eu achei que estava ficando louca. Mas agora... agora eu vejo. Você já esteve lá.
Débora sentiu o coração bater forte. Pela primeira vez, compreendeu que aquela floresta escura que enfrentara não era só sua. Era um lugar real, não no mundo físico, mas em um nível profundo da existência humana. Um espaço que só podia ser acessado por aqueles que conheciam a dor de verdade. Mas o que veio em seguida a deixou sem fôlego. A jovem tirou um pequeno objeto do bolso, uma pedra opaca, com uma leve cintilância azulada. Ela colocou-a na mão de Débora.
— Eu encontrei isso na estrada. Não sabia o que era. Mas agora eu sei... Você é uma Guardiã, não é?
Débora olhou para a pedra. Algo dentro dela despertou. Uma memória antiga, ou talvez uma visão, de outras almas vagando pela mesma floresta, cada uma carregando uma pedra semelhante. Os Guardiões, não eram entidades externas, eram pessoas comuns que haviam atravessado a escuridão... e voltado. Ela agora compreendia.
Os Guardiões da Felicidade não eram seres que apareciam magicamente. Eles surgiam quando alguém decidia ficar. Quando alguém decidia sentar ao lado de outro na escuridão, mesmo sem entender totalmente a dor. Débora apertou a pedra entre os dedos. Sentiu seu calor. A jovem ao seu lado agora respirava com mais calma.
— Talvez, respondeu Débora, com um sorriso leve, sejamos todas Guardiãs em construção.
Mas, ao virar o rosto novamente para a jovem, ela não estava mais lá. O banco estava vazio. A pedra, ainda na palma de Débora, pulsava uma luz suave.
Naquela noite, ao retornar para casa, Débora olhou para o céu encoberto e pensou na jovem. E então entendeu.
Talvez ela não estivesse ali como alguém real, mas como uma parte esquecida de si mesma. Talvez fosse a Débora de antes, a parte que um dia chorou sozinha e ficou esperando por alguém que nunca veio. Mas agora, ela havia voltado... e sido acolhida. A verdadeira luz na névoa não era algo distante. Estava dentro. E se manifestava toda vez que alguém tinha coragem de dizer: “Eu estou aqui.”
Antonio Souto
Enviado por Antonio Souto em 25/07/2025