Antonio Souto
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Simplesmente humano

Eram anos 2050. A população vivia envolta com seus androides e robôs sistêmicos. Linhas tênues afastavam as pessoas cada vez mais, não por falta de recursos, mas por excesso de distrações. As ruas estavam limpas, organizadas, silenciosas,— quase estéreis. Crianças aprendiam com tutores digitais, casais trocavam mensagens programadas por assistentes de relacionamento, e amizades se mantinham vivas apenas por hologramas pré-agendados. No início, tudo parecia eficiente.

 

Ninguém mais se perdia nas filas dos bancos, nas discussões inúteis ou nos atrasos do transporte público. Mas, aos poucos, o que era progresso virou isolamento. Algo diferente estava acontecendo com as pessoas. Elas não mais conviviam umas com as outras tinham levado, sem querer, a um isolamento. Algo diferente estava acontecendo com as pessoas. Elas não mais conviviam umas com as outras. Tinham levado, sem querer, a um isolamento emocional profundo, mascarado por uma rotina impecavelmente funcional. Cada um vivia cercado de suas inteligências artificiais pessoais, projetadas para responder, prever, entreter. Mas nada nelas conseguia substituir o imprevisível do humano: o desconforto de uma pausa longa numa conversa real, o arrepio de um elogio inesperado, ou o calor de um abraço fora de hora.

 

Os cafés ainda existiam, mas não tinham a frequência constante das pessoas no fim de tarde. As praças eram vigiadas por drones que espantavam pombos e recolhiam folhas secas. Os apartamentos tinham tudo: luz automatizada, clima personalizado, até hologramas de janelas com vistas paradisíacas. As pessoas começaram a adoecer de uma forma nova. Não era mais gripe ou estresse. Era silêncio. Um cansaço sem nome. Médicos, ou melhor, programas de saúde pública, diagnosticavam como “Síndrome do Vazio Conectado”, todos ligados, mas ninguém realmente juntos.

 

Foi nesse cenário que viviam Nora e Heitor, um casal de idosos que se recusava a viver daquela forma tão individualista. Eles tinham um pequeno sítio no interior da cidade, um recanto esquecido pelo tempo e pela tecnologia. Lá, não havia sinal de rede, os drones não passavam e, por escolha, não havia assistentes virtuais.

 

O sítio era simples, mas vivo. As galinhas ciscavam no terreiro, um toca fita, coisa que ninguém mais conhecia, tocava boleros, e o cheiro do pão assando no forno a lenha se espalhava pelo quintal como convite. Nora cuidava do jardim com mãos de terra, cultivando girassóis e hortelã, enquanto Heitor colhia laranjas e contava histórias que nunca estavam em nenhum banco de dados. Eles, sempre alegres, se divertiam a cada momento, chegando ao ponto de molhar um ao outro enquanto regava as plantas.

 

Eles sabiam que eram vistos como relíquias, quase aberrações, naquele tempo tão marcado pela indiferença das pessoas. Mas, naquele canto de mundo, reencontravam o que o progresso havia tentado apagar: o tempo partilhado.

Às vezes, alguém aparecia. Um neto cansado da correria, um jovem curioso, ou um estranho em busca de algo que nem sabia nomear. Nora sempre os recebia com um sorriso caloroso e um copo de suco feito na hora. Heitor puxava conversa, com paciência, como quem planta.

— Aqui o tempo anda no compasso do coração — dizia ele.

 

Foi em uma dessas tardes que surgiu Lia, uma adolescente calada, filha de um casal da cidade que “trabalhava demais para ter tempo”. Chegara ao sítio para passar uns dias com os velhos parentes enquanto os pais viajavam. Trazia um tablet, fones de ouvido e um olhar vazio.

 

No primeiro dia, ficou trancada no quarto, conectada. No segundo, reclamou do cheiro de mato. No terceiro, Heitor a convidou para colher ovos com ele. Ela recusou. Mas Nora não insistiu. Apenas deixou, discretamente, um caderninho e um lápis sobre a cama da menina.

 

Na noite do quarto dia, a luz acabou. Nada funcionava. Nem o tablet, nem a casa automatizada dos pais, nem o chip de conexão pessoal. O escuro era total.

— E agora? — Lia perguntou, aflita. — O que a gente faz?

— Agora a gente olha as estrelas — disse Nora, com serenidade.

 

Sentaram os três na varanda. O céu, sem interferência artificial, era um espetáculo. Lia, pela primeira vez, viu uma estrela cadente. Heitor contou a história de quando pediu Nora em casamento sob aquele mesmo céu.

A garota, aos poucos, começou a falar. Coisas simples. Depois, mais profundas. Falou da solidão de morar com pais ausentes.

 

Do cansaço de fingir estar bem nas redes. Das saudades que não sabia de onde vinham. Na manhã seguinte, Lia colheu ovos. Depois, ajudou a preparar pão. No final da semana, pediu para ficar mais um pouco. Nora e Heitor não salvariam o mundo, sabiam disso. Mas cada pessoa que passava por ali e era tocada por aquele modo antigo, e tão humano de viver, levava uma semente consigo.

 

E talvez fosse assim, de forma lenta, imperfeita, mas real, que a humanidade voltasse a florescer. Com o tempo, o pequeno sítio de Nora e Heitor deixou de ser apenas um refúgio de calmaria e virou ponto de partida de algo maior. Lia, ao voltar para a cidade, não conseguiu mais se encaixar na rotina pasteurizada que antes considerava normal. Aquela semana de desconexão tinha despertado nela uma inquietação nova, uma fome de presença verdadeira.

Na escola, Lia começou a agir diferente. Fazia perguntas que os tutores digitais não conseguiam responder e pedia para ter conversas de verdade com os colegas. Também sugeriu criar um clube de leitura com livros de papel. No começo, alguns riram dela. Mas, com o tempo, outros estudantes ficaram curiosos e começaram a participar.

Lia passou a escrever bilhetes à mão e trocava com os amigos. Aquilo parecia estranho no início, mas muitos começaram a gostar do toque do papel e do tempo mais calmo das conversas sem tela. O nome “Viva Gente” começou a circular entre eles — primeiro como uma brincadeira, depois como uma forma de mostrar que ainda queriam sentir, conversar, estar juntos de verdade.

Enquanto isso, em outras partes do país, surgiam focos semelhantes. Um professor de música aposentado retomou as aulas de violão no quintal de casa. Uma cozinheira desligou os cardápios digitais e começou a ensinar receitas antigas em rodas presenciais. Uma ex-engenheira trocou o laboratório de algoritmos por uma oficina de cerâmica coletiva.

Esses pequenos núcleos começaram a se encontrar. Não online. Não por meio de plataformas. Mas por cartas, encontros marcados por telefone, indicações de boca em boca. Surgiram mapas feitos à mão, com os locais onde ainda se vivia “no compasso do coração”, como dizia o velho Heitor. Uma nova rede foi se formando, lenta, orgânica, resistente.

O sistema não demorou a perceber. Chamaram aquilo de “regressão comportamental espontânea”. Começaram campanhas de “reeducação emocional”, oferecendo versões otimizadas de afeto mediado por IA. Criaram até bots que imitavam conversas de avós, mas era tarde. As pessoas que haviam provado o silêncio verdadeiro, o cheiro do pão, o calor de um abraço não aceitavam mais substitutos.

 

Nora e Heitor, agora, recebiam visitas quase toda semana. Jovens, adultos, até famílias inteiras em busca de algo que haviam esquecido que existia. O sítio virou escola. Virou ponto de encontro. Não havia marketing, não havia anúncios. Apenas o boca a boca, o mais antigo algoritmo da humanidade. Heitor, sentado em sua cadeira de balanço, certa vez disse:

— Não somos contra o futuro. Só não abrimos mão do presente.

E foi assim, por entre brechas de concreto e silício, que a semente do humano brotou outra vez.

 

 

 

Antonio Souto
Enviado por Antonio Souto em 02/07/2025
Alterado em 02/07/2025
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