O sol nem pensava em nascer e Dona Graça já estava de pé, preparando o café. O cheiro de pão com margarina enchia a casa de dois cômodos. Era pouco, mas era o que havia, e era feito com amor.
Graça era empregada doméstica e criava Júlia sozinha desde que o pai da menina sumira no mundo, alegando que “não tinha nascido pra família”. Ele se foi deixando para trás uma filha de três anos, uma pia cheia de louça e uma mulher com o dobro de força no peito.
Agora, com oito anos, Júlia se recusava a ir à escola.
— Levanta, filha... já são seis. O mundo tá lá fora te esperando. — dizia Graça, suavemente.
— Mãe, não quero. A escola é chata.
Graça suspirou. Já conhecia aquele tom. Sentou-se ao lado da menina, que, de olhos bem abertos, encarava o teto como se ele escondesse as respostas do universo.
— Por que não quer ir? Conta pra mim.
Júlia virou o rosto. Falou baixinho, como quem tem vergonha até do próprio pensamento:
— Porque tudo é muito chato. A professora passa a mesma coisa mil vezes. Eu já entendi na primeira. Aí eu fico olhando pela janela e pensando em outras coisas... e ela briga comigo. Diz que tô distraída.
— E o que você pensa quando olha pela janela? — perguntou.
— Penso no tempo. Outro dia, fiquei calculando quanto tempo a luz do sol demora pra chegar até a gente. Demora oito minutos e vinte segundos. Sabia? Aprendi isso lendo aquele livro velho que você achou no ponto de ônibus.
Também fico pensando se os outros colegas pensam como eu. Mas acho que não. Eles me acham esquisita.
Graça segurou a mão da filha, com delicadeza. Aquela menina não era apenas inteligente. Era sensível demais. Vivia num mundo interno tão rico que a escola parecia pequena demais pra abrigá-la.
— Filha... você vê o mundo com outros olhos. Isso é lindo. Mas é também uma missão. Nem todo mundo vai entender de primeira. Nem sempre vão te acompanhar no ritmo que seu pensamento corre. Mas isso não quer dizer que você está errada. Só que você está à frente. E quem está à frente precisa ser paciente.
— Mas é injusto. Eu fico sozinha lá. Não tenho com quem conversar sobre o que realmente me interessa.
— Você acha que eu gosto de limpar banheiro dos outros? Lavar roupa de gente que nem me dá bom-dia? Eu faço isso pra você ter opção. Pra você poder escolher o que quiser ser. Mas você precisa passar por essa fase. A escola não vai durar pra sempre. Sua mente vai. Apesar da simplicidade de Graça, esse conselho era de uma grandeza que fez Julia refletir muito
— Então você acha que eu sou diferente mesmo? — perguntou Júlia, com um leve brilho nos olhos.
— Eu não acho. Eu sei. Você é luz, filha. Mas até a luz precisa passar por alguns caminhos escuros pra ser vista.
Naquela manhã, Júlia se vestiu sem reclamar. Prendeu os cabelos sozinha. E antes de sair, olhou para a mãe:
— Quando eu for cientista, vou te levar pra ver a aurora boreal. Porque a senhora também é luz. Só que daquelas que não cansa de brilhar.
Graça sorriu, com os olhos marejados.
E Júlia partiu. Colocou a mochila nas costas, e com passo firme e pensamento longe foi para escola , talvez contando os oito minutos e vinte segundos de distância.