A casa de vidro
Na cidade tranquila de Araraquara, onde o sol parecia repousar mais devagar sobre os telhados, morava Clara. Seu nome já dizia muito: havia luz em seus olhos e transparência em seu modo de ser. Por mais de três décadas, Clara viveu entre números, planilhas e prazos, como gestora financeira. Era eficiente, respeitada e dedicada. Mas havia algo que só ela sentia – uma inquietação silenciosa, como um pássaro preso no peito, batendo asas sem sair do lugar.
Clara carregava um caderno azul na bolsa. Nele, entre anotações soltas, rabiscava versos. Poesias que nasciam quando o mundo lá fora calava. Era sua forma de respirar mais fundo, de ver a beleza no ordinário. Mas por muito tempo, manteve o caderno escondido, como se fosse um segredo que nem ela tivesse permissão de revelar.
Aos 50 anos, quando muitos já se conformam com a mesmice, Clara decidiu reinventar-se. Foi como se, de repente, ela escutasse o tal pássaro pedindo para voar. Ingressou na faculdade de Psicologia. Entre teorias e estágios, reencontrou sua própria alma. Cada aula era um espelho. Cada atendimento, um mergulho. Descobriu dores que nunca soube que sentia, cicatrizes que não lembrava ter, e também uma força imensa – a de acolher, escutar, entender sem julgar.
A aposentadoria chegou como uma benção, mas não como um fim. Era só o recomeço de um novo ciclo. Clara montou seu consultório. Simples, com janelas grandes, muitas plantas e uma estante repleta de livros. Chamava carinhosamente de “a casa de vidro”, pois dizia que ali tudo era claro, leve e verdadeiro.
Ela atendia com o coração. Desenvolveu uma escuta rara: aquela que ouve o que não é dito. Exercitava a empatia como quem rega uma flor diariamente. Sabia que não curava ninguém – apenas caminhava junto. Seu passado na administração ensinou-lhe a organização; a poesia, a sensibilidade; e a psicologia, a arte de ser ponte.
Clara nunca usou seus poemas para aconselhar. Respeitava o limite ético como quem respeita o rio em seu curso. Mas suas poesias estavam em tudo – no modo como olhava o outro, no cuidado em cada gesto, no silêncio que oferecia como abraço. E, às vezes, quando voltava para casa, sentava-se à varanda e escrevia sobre a vida que renasce depois dos 50, sobre as muitas formas de amar, sobre o prazer de ajudar alguém a se encontrar.
Era só uma poetisa, diria ela, com modéstia. Mas quem a conhecia sabia: Clara era mais que isso. Era farol para quem estava perdido. Era testemunho vivo de que nunca é tarde para seguir o que pulsa dentro do peito.
E assim, em sua casa de vidro, Clara seguia escrevendo – versos, encontros, e histórias que só quem tem coragem de mudar pode viver.
Antonio Souto
Enviado por Antonio Souto em 09/06/2025