Antonio Souto
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Cadê os contadores de causos de antigamente?

Outro dia, resolvi dar uma chance ao teatro e fui assistir a um espetáculo chamado Comedy Comic. O nome do “ator” não vem ao caso mas ele me levou R$150,00, paguei acreditando que me esperava uma noite de boas risadas. Ledo engano. O que encontrei foi um festival de piadas sem graça, palavrões em enxurrada e uma interpretação que mais parecia um grito desesperado por atenção do que qualquer tentativa de arte. Dei azar, é verdade. Escolhi, sem saber, um espetáculo genuinamente de baixo nível.

 

Saí de lá com a sensação de que tinha rido mais da vergonha alheia do que do humor propriamente dito. E foi então que me bateu uma saudade danada dos tempos em que humor era arte e o contador de causos, um verdadeiro encantador de palavras. Lembrei do meu tio Barreto, da minha infância. Um sujeito que transformava qualquer conversa numa história de encher os olhos e a barriga de riso. Não gritava, não se contorcia, não precisava de palavrão por minuto. Bastava uma boa prosa e um fiapo de memória. E pronto: a gente ria de verdade. Ria com o coração, sem constrangimento, sem culpa.

Meu tio contava do compadre Firmino, que quis caçar tatu usando brigadeiro como isca; do padre que tropeçou na procissão e deu uma benção de testa no chão; da cobra que virou mascote do time do bairro. Era uma gargalhada com respeito, com espanto, com ternura.

 

Hoje, parece que a pressa engoliu a poesia do riso. Espetáculo virou gritaria, e o bom humor foi trocado pelo escândalo fácil. Quanto mais grotesco, mais “engraçado” parece ser. Mas não é. É só barulho.

Voltei pra casa com os ouvidos doendo e o bolso mais leve. Liguei a TV , estava passando uma entrevista antiga do Jô Soares com Ary Toledo. Bastou ele começar a falar para eu ter certeza: os R$150,00 que paguei foram para o bolso errado.

Ary começou a contar um causo de um freguês que só falava palavras com F, e foi impossível não rir. Que interpretação, que tempo de comédia, que talento! Fiquei até o fim, vidrado, encantado com aquele humor que não humilha, que não grita, que não apela. Apenas diverte.

E aí, decidi compartilhar aqui o texto que se tornou em um diálogo impagável entre o garçom e o freguês. Porque se os palcos andam carentes de verdadeiros contadores de histórias, que ao menos a gente ajude a manter essa chama acesa, nem que seja no papel. Vamos ao texto intitulado : "O monologo do F"

 

— Que prazer ter o senhor de volta ao meu restaurante! — saudou animado o garçom.

— Fala, Figura! — respondeu Francisco, com um sorriso de canto.

— Não tá me reconhecendo?

— Fisionomia familiar...

— Sou o Garçom Fernando! A gente se conheceu há um tempo. Engordei, virei Fernandão. Cabelo caiu... — explicou, meio encabulado.

— Foi fato. Ficou forte, fofão... floresta foi, ficaram fiozinhos fininhos e fracos fazendo figuração no forro.

Fernando riu alto, sentindo o velho cliente voltar a seu posto de rei da casa.

— E o senhor, como está?

— Forte e firme, feliz e faminto.

— Tem uma mesa vazia lá fora...

— Fora é frio, ficam os fumantes fazendo fumaceira forte. Fico na frente, é fresquinho. Faz favor...

Fernando conduziu o freguês ao local escolhido.

— Seu nome mesmo, senhor...?

— Francisco Freire Fernão Fernaz Fernandes Figueira Furtado Franco Ferreira Ferreira de Figueiredo Falcão.

— Facinho de falar mesmo... E já escolheu?

— Favorito.

— Qual é o favorito?

— Filé de frango à francesa com fricassé de fubá, farofa, fritas, feijão, fatiazinha de fígado, frito com farinha fina na frigideira, fica finíssimo, falou filhão?

Fernando anotou com cuidado, tentando não rir da precisão do freguês.

— E pra beber?

— Fisga no fundo do freezer uma fermentada fresquinha fazendo fumaça!

Enquanto o garçom trazia a cerveja, puxou assunto:

— De férias aqui em Frutal, seu Francisco?

— Faturando o feijão dos filhos...

— E esse braço engessado aí? Acidente?

— Foi.

— Onde?

— Friburgo.

— E como foi?

— Fresco num FIAT fedorento fuleiro, frente ao footing, falhou o freio. Fui de frente na fronte do fusca. Fechando, fiquei fora da faixa, furei o farol fechado e fui em frente dum furgão.

Fernando piscou, tentando processar tudo.

— Uma porrada violenta!

— Felizmente foi fraco. Ferimentos, fronte, face e falange.

O garçom, curioso, apontou para o gesso cheio de assinaturas.

— Dos filhos? Quantos?

— Five! Fabinho, Flávio, Fernando, Fátima e Fabiana!

— Fabiana, aquela que estudava... se formou?

— Formou! Filosofia em Friburgo. Fiz festa fantástica.

— Ela ajudava na sua indústria, né?

— Fabriquinha. Fundição: forno, ferrete, ferradura, faca, foice, funil, ferramentas fundidas em ferro forjado.

— Ainda tem a fábrica?

— Fechei. Faliu. Faltou financiamento. Fiscais ferozes, fornecedores falhando, faturamento fraco. Foi feio. Fui forçado a fechar.

— E agora faz o quê?

— Feiras e festas. Fui a Fortaleza, Floripa, Franca, feira Francal, festival do figo... fui fiscal em feira filantrópica.

— Mas mora aqui?

— Fixei em Friburgo pra facilitar Fabiana. Faculdade Filosofia, fiquei.

— Torce pro Friburguense?

— Falhou. Futebol Flamengo, fã fanático.

— E o time?

— Fase. Final é furacão! Fla-Flu? Final fácil, Fluminense freguês!

— O senhor foi na festa da semana passada?

— Fui! Festa a fantasia, fêmeas fantásticas! Flertei...

— Mas o senhor não é casado?

— Fui. Filomena faleceu. Fevereiro.

— De quê?

— Fumo. Faringe. Fibrose. Famigeradamente fumava. Falei, falava, falava... não fez fé. Foi ficando frágil, febril... foi fatal.

O restaurante silenciou por um segundo.

— Filó foi figura fantástica. Fiel. Forte. Faz falta...

Fernando, com um nó na garganta, mudou de assunto.

— Sobremesa?

— Frutas frescas: figo, framboesa flambada. Fica finíssimo.

Após a sobremesa, trouxe um café fervente.

— Que tal?

— Formidável. Fresquinho, forte, fervendo. Não ficou o famoso fraco, fino, fedido, feito em filtro furado, fundo formiga fazendo festa.

Fernando estava embasbacado.

— Seu Francisco, sua facilidade com "f" é fora do comum!

— Fato. Falar em "f" é fichinha. Falo fluentemente. Frases fluem. Fico falando de farra.

Fernando sorriu e resolveu brincar.

— Desafio: fale quinze palavras com F sobre o almoço. Se conseguir, não paga.

Francisco se ajeitou, respirou fundo e disparou:

— Filé de frango à francesa fatiado em fatias finas, fritando na frigideira ficando fiado, fico feliz e freguês fiel...

— Deu só 14! — disse o garçom, rindo.

Francisco ergueu o braço engessado, ajeitou o chapéu, e soltou a última palavra:

— Foda-se!

E foi-se.

Ficou só o Fernandão rindo até a barriga tremer, tentando anotar tudo aquilo, quem sabe pra um conto...

 

E foi aí que percebi que talvez os contadores de causos não tenham desaparecido. Talvez eles só tenham mudado de lugar. Saíram dos palcos e ficaram nos balcões, nas esquinas, nas rodas de café. Estão vivos, basta ter ouvidos prontos, olhos atentos e o coração desarmado. Porque o bom humor, aquele de raiz, nunca se aposenta. Ele só se esconde do barulho.

 

 

Antonio Souto e Ary Toledo - O Monologo do F
Enviado por Antonio Souto em 03/06/2025
Alterado em 03/06/2025
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